Há 40 anos morria Tancredo Neves, presidente que não tomou posse mas virou peça-chave da redemocratização

Há 40 anos morria Tancredo Neves, presidente que não tomou posse mas virou peça-chave da redemocratização

Opositor do regime, Tancredo catalisou esperanças e conduziu a costura final da transição de poder. “Articulador”, “arquiteto” e “fiador da redemocratização” são termos usados para descrever o político mineiro – um senhor calvo, estrategista, comunicativo, contador de causos e contrário aos extremos. “A trajetória dele identifica o mais autêntico liberal, defensor permanente da democracia. Não foi a luta armada, não foi o radicalismo verborrágico de alguns políticos que conseguiram terminar com o governo militar. Foi a negociação política”, avalia o historiador Antônio Barbosa. Escolhido pelo voto indireto para suceder o general João Figueiredo na Presidência da República, Tancredo foi hospitalizado na véspera da posse com fortes dores abdominais. Após sete cirurgias e 39 dias de uma agonia compartilhada com o país, morreu em São Paulo, aos 75 anos. “Lamento informar que o excelentíssimo senhor presidente da República, Tancredo de Almeida Neves, faleceu esta noite, no Instituto do Coração [InCor], às 10 horas e 23 minutos [22h23]”, anunciou o porta-voz Antônio Britto, em um comunicado transmitido ao vivo para todo o Brasil. Tancredo Neves, em foto de arquivo — Foto: Reprodução/TV Globo Passadas quatro décadas, Britto acredita que falta ao Brasil buscar os consensos como ensinou Tancredo. “Política é o exercício do diálogo e o diálogo é necessário quando se faz entre quem pensa diferente”, diz o ex-porta-voz. Britto testemunhou a comoção nas ruas, com milhares de pessoas a acompanhar o périplo do esquife do presidente por São Paulo, Brasília, Belo Horizonte e São João del-Rei. Cenas de pessoas aos prantos e de semblantes desolados se replicaram pelo país. Antonio Britto relembra anúncio da morte de Tancredo Neves “A morte de Tancredo foi o centro dos acontecimentos que levaram, naquele instante, o Brasil à maior comoção da sua história”, afirma o ex-presidente José Sarney, que era vice na chapa de Tancredo. Ex-aliado da ditadura, Sarney dirigia o governo desde 15 de março e assumiu em definitivo a tarefa de Tancredo: convocou a assembleia que redigiu a Constituição de 1988 e entregou, em março de 1990, o poder a Fernando Collor, o primeiro presidente eleito pelo voto direto desde 1960. Ministro de Getúlio Vargas Tancredo nasceu em 4 de março de 1910 em São João del-Rei, um dos 12 filhos de Francisco Paula Neves e Antonina de Almeida Neves. Cresceu em uma família de comerciantes abastados, políticos e militares. Formou-se em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e voltou à sua cidade, onde se casou com Risoleta, com quem teve três filhos. Tancredo iniciou a carreira política como vereador em São João del-Rei (1935-1937), foi deputado estadual (1947-1950) e deputado federal (1951-1953). Tancredo Neves durante discurso, em foto de julho de 1984 — Foto: Antonio Lúcio/Estadão Conteúdo/Arquivo No Rio de Janeiro, então capital federal, foi nomeado ministro da Justiça do segundo governo de Getúlio Vargas (1951-1954). Estava no Palácio do Catete quando o presidente se matou com um tiro. Ouviu o estampido e se deparou com Vargas sem vida no quarto da ala residencial. Primeiro-ministro Tancredo foi aliado de Juscelino Kubitschek. Em 1955, auxiliou na tratativa que desarmou um golpe para impedir a posse do conterrâneo como presidente. O político também foi secretário de finanças de Minas Gerais e, em 1960, perdeu a eleição para o governo estadual. Em seguida, foi escalado para resolver uma das maiores crises da República. Em agosto de 1961, o presidente Jânio Quadros renunciou. Militares e adversários políticos do vice, João Goulart, se opuseram à posse, o impasse beirou o conflito armado e Tancredo foi enviado ao Uruguai, onde convenceu o novo presidente a aceitar o regime parlamentarista, que durou até 1963. Tancredo foi primeiro-ministro de setembro de 1961 a junho de 1962, o mais alto cargo que exerceu em sua carreira. Tancredo Neves, primeiro ministro de João Goulart, tem seu nome inscrito em termo de posse conjunto de 1961 Senado Federal — Foto: Agência Senado/Divulgação Ditadura militar Deputado outra vez, Tancredo estava no Congresso no dia 2 de abril de 1964, quando o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, declarou vaga a Presidência da República – mesmo com João Goulart no país. 🗣️ O mineiro esbravejou “canalha’, “canalha” contra a decisão que endossou o golpe. “Ele defende a democracia, principalmente se você pensar que não fazia parte do bloco progressista ou dos grupos de esquerda que apoiam João Goulart”, destaca a historiadora Heloisa Starling. 🚫 A ditadura, com cinco generais como presidentes ao longo de 21 anos, foi marcada pela ausência de eleições diretas para presidente e pela repressão violenta, com cassações, censura à imprensa, tortura e assassinato de opositores e períodos de fechamento do Congresso. Com a imposição do bipartidarismo, Tancredo ingressou no MDB, legenda contrária ao regime. Fez oposição dentro das regras da ditadura, desviando das cassações e criando pontes com militares. “Ele acreditava que política é, antes de tudo, negociação. Negociação em que se avança e se retrocede, mas sem jamais se afastar dos seus princípios”, relata o historiador Antônio Barbosa. Tancredo Neves não tomou posse, mas entrou para a história Diretas Já Tancredo se reelegeu deputado até conquistar uma cadeira no Senado, em 1978. Após a vitória, afirmou ao jornal “Folha de S. Paulo” que temia que radicalismos atrapalhassem o caminho até a democracia: “Temos que reunir uma poderosa aliança democrática, a fim de conjurar tais perigos”. 🗳️ Em 1982, Tancredo se elegeu governador de Minas Gerais. Apoiou a campanha das “Diretas Já”, pela volta da eleição direta para presidente, porém entendia que o caminho viável para vitória da oposição seria o voto indireto no colégio eleitoral, conforme relatou em 1983 ao “Jornal do Brasil”: “a campanha pelas diretas é necessária, mas lírica. E o PMDB necessita instrumentalizar-se para a negociação possível.” 🗳️ A emenda Dante de Oliveira, como ficou conhecida a proposta para determinar o voto direto na eleição de 1985, não obteve o quórum de aprovação, mas criou o ambiente pró-redemocratização. “Tancredo tinha uma leitura que aquele era um movimento cívico de enorme potencial e havia se transformado no maior do Brasil. E essa mobilização popular toda das Diretas Já foi canalizada para o projeto da oposição de voltar ao poder”, explica o historiador Ronaldo Costa Couto. Movimento das ‘Diretas Já’ completou 40 anos em 2024 Vitória no colégio eleitoral Tancredo se tornou o candidato da oposição. O deputado Ulysses Guimarães, uma das principais lideranças do PMDB, não tinha o mesmo trânsito com parlamentares governistas e enfrentava maior resistência de militares, muitos deles contrários à redemocratização. Com o slogan “Muda Brasil. Tancredo Já”, a campanha contra o governista Paulo Maluf prosperou. O senador José Sarney trocou o PDS, aliado do regime, pelo MDB para ser o vice da chapa. Composto por deputados, senadores e delegados dos estados, o colégio eleitoral se reuniu em 15 de janeiro de 1985 no plenário da Câmara dos Deputados. Foram 480 votos para Tancredo, contra 180 de Maluf. Tancredo comemorou de mãos erguidas e entrelaçadas com Risoleta e Ulysses. Em seguida, discursou. Anunciou que aquela era a “última eleição indireta do país” e que vinha “em nome da conciliação” para “realizar urgentes e corajosas mudanças políticas, sociais e econômicas”. O presidente eleito assumiu o compromisso de buscar uma nova Constituição, de combater à inflação e gerar empregos. Reconheceu o papel das Forças Armadas naquele momento de transição e defendeu a política e a democracia, pilares da Nova República que se anunciava. “Reencontramos, depois de ilusões perdidas e pesados sacrifícios, o bom e velho caminho democrático. Não há pátria onde falta democracia”, disse. ‘Brasil em Constituição’: o futuro da democracia brasileira Internação às pressas e agonia de um país A cerca de 12 horas da posse, marcada para manhã de 15 de março no Congresso, Tancredo foi internado no Hospital de Base, em Brasília, com dores abdominais. A equipe médica optou pela cirurgia. Um país incrédulo acompanhou aquela saga. Antes da cirurgia foi divulgado que Tancredo sofria de apendicite aguda, diagnóstico mudado para diverticulite. Na verdade, a cirurgia retirou um leiomioma benigno, um tumor do intestino do presidente. Duas décadas depois, em 2005, o Fantástico revelou que os médicos divulgaram o laudo falso diante do receio da cúpula do novo governo de que a transição fosse barrada pelos militares. “O doutor Tancredo foi o fiador da transição. Foi uma transição negociada, e ele permitia unir os que lutavam pela democracia e obter apoios entre os que tinham participado do regime militar”, diz Antônio Britto. Após uma madrugada de negociações, Sarney foi empossado vice e ficou como presidente em exercício. Último general a governar o país, João Figueiredo se recusou a passar a faixa por considerar Sarney um traidor. Marco da redemocratização do Brasil, posse de José Sarney completa 40 anos Nação em luto A retirada do tumor não foi suficiente, e Tancredo foi operado novamente em Brasília. Em 25 de março, posou para fotos ao lado de Risoleta e dos médicos. À noite, sofreu uma hemorragia no intestino. O presidente foi transferido para o Instituto do Coração (InCor), em São Paulo. Submetido a outras cinco cirurgias, não reagiu e seus órgãos foram parando. Morreu em 21 de abril de 1985, Dia de Tiradentes, de “síndrome da resposta inflamatória sistêmica”, conforme revelou o Fantástico. Multidões acompanharam o cortejo de Tancredo em São Paulo e Brasília. No dia 22 de abril, o artífice da redemocratização subiu a rampa do Palácio do Planalto em um caixão. Foi velado no prédio onde deveria estar governando. O esquife ainda passou por Belo Horizonte antes do repouso no cemitério aos fundos da Igreja de São Francisco, em São João del-Rei. Um ano depois, Sarney sancionou a lei que deu a Tancredo status de ex-presidente. Passados 40 anos, o vice alçado a presidente avalia que foi possível “construir uma engenharia política” para mostrar às diferentes forças políticas a importância da democracia e prosseguir com a transição. “A democracia não morreu nas minhas mãos. Pelo contrário, ela floresceu”, celebra Sarney. José Sarney (ao centro, de bigode preto) toma posse após morte de Tancredo Neves — Foto: Agência Senado

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